Um vidente entre incrédulos
"Acorda cara, que porcaria é essa cara? Tá todo mundo ligado na
parada e só tu nessa viagem, presta atenção cara!"
"Qual é cumpadi?! Quando foi que eu dei furo? Diz aê! Tô só
repassando o esquema. Dirige aê e me deixa quieto".
Eram cinco no mesmo carro furtado dois dias antes. Quanta loucura! Na
hora de sair do carro o motorista se enganchou no cinto e por muito pouco não
levou uma bala na cabeça. O mesmo que deu a bronca em Marcos há pouco, coçava o
dedo pra atirar. Em qualquer oportunidade ele fazia questão de puxar o gatilho,
mas até agora não havia cometido nenhuma besteira maior, no entanto Marcos
sabia que cedo ou tarde Júlio cometeria algum assassinato e isso o deixava cada
vez mais nervoso quanto ao futuro.
Como tudo começou? Onde uma turma de adolescentes que gostava de beber e
namorar se tornou uma quadrilha de assaltantes? As lembranças de Marcos
misturavam-se com o conturbado momento presente. Cinco jovens, entre 15 a 17
anos, em seu quarto ato criminoso. O primeiro foi um "sucesso", porém
só Marcos e Júlio concretizaram o delírio irresponsável.
Os dois vinham de uma festa de aniversário. Eram duas da manhã e os
amigos de infância, já muito além do limite da embriaguez, resolveram
roubar um carro. Escolheram um Celta preto estacionado próximo a uma escola do
bairro. O roubo foi mais fácil do que pensavam. O carro, além de não ter
alarme, estava com o tanque cheio. Júlio, que já antes de Marcos, andava
seduzido pela criminalidade, não teve dificuldades de fazer a ligação direta.
Com esse carro, encontraram Tiago, Felipe e Jonas. Estava formada a quadrilha
dos meninos da Rua 12.
Em troca do carro conseguiram as armas, com as armas veio o segundo
crime. A farmácia central era movimentada e oferecia ótima rota de fuga. Nesta
ação os meninos da rua 12 lucraram muito e com isso vieram todos os deleites
que o mundo oferecia e que só dinheiro poderia comprar: prostituição, drogas,
bebidas, roupas, luxo...ostentação.
A vizinhança começou a desconfiar e a bandidagem passou a integrar os
meninos em seus círculos. Logo os garotos começavam a trocar a infância por uma
falsa maturidade. Neste cenário só Marcos não aparentava curtir o momento em
sua totalidade. Sempre havia uma incômoda capacidade de reflexão que o deixava
nervoso e com raiva de si mesmo. "Por que não curto como os outros? Por que
não consigo esquecer o que fiz e encaro tudo numa boa como Júlio faz? Por que
há sempre uma voz em minha cabeça tirando minha paz?". Sua mãe sempre
dizia que essa voz era o Espirito Santo a orientá-lo e que, por mais que Marcos
quisesse, jamais se livraria daquilo. Ela sempre repetia: "João 6:37,
...aquele que o Pai me der, esse virá a mim; e o que vem a mim, de maneira
alguma o excluirei.", e finalizava dizendo que a vida de Marcos fora
comprada a preço de sangue e que mesmo no mais profundo poço, Deus não permitiria
que um filho seu se perdesse tão facilmente.
Toda aquela conversa parecia estar tatuada em sua memória. Ele lembrava
que dos 12 aos 15 anos sua vida era a igreja e que uma amizade muito forte
havia sido rompida. Sentia-se vazio e sabia que só havia uma coisa que podia
preenchê-lo de verdade. Esse algo não estava nos frutos atraentes que o mundo
oferecia, mas dentro dele, em algum lugar que só uma oração silenciosa poderia
revelar e era isso que não o deixava em paz. Júlio, sempre observador, já notara
o olhar distante do amigo e isso também o incomodava muito.
O terceiro crime fora o mais tenso até agora. Ao roubar a farmácia,
apesar do alto faturamento, os meninos viram que não era viável assaltar a pé.
O risco de ser pego era muito grande, então decidiram roubar outro carro que
fosse pequeno e veloz. Em um sinal movimentado escolheram sua vítima. Era um carro
prata, aparentemente novo. Júlio se antecipou, sacou a arma e bateu o cano no
vidro do carro, como não teve resposta atirou para o alto. Isso assustou as
pessoas que passavam e chamou a atenção de todos ao redor. Eram nove da noite e
ainda havia trânsito intenso no local. O motorista trêmulo e assustado abriu a
porta do carro, mas enganchou-se no cinto. Isso irritou profundamente Júlio que
encostou o cano do revólver na cabeça do motorista. Pela primeira vez, após
muito tempo, Marcos permitiu sair de seus lábios uma breve, silenciosa, mas
verdadeira oração: "Senhor, não permita" Nesse instante Júlio
recolheu a arma. O homem do carro, que ouvira o sussurro de Marcos, olhou para
ele e disse: "Nove, um, sete". Sem tempo para pensar Marcos empurrou
o motorista e entrou no carro com os comparsas em meio a sensações de medo,
terror e trevas.
Guardaram o carro em um sítio pouco visitado da família de Felipe.
Comemoraram o feito com muito bebida e drogas. Nesta noite Marcos estava bem.
Ria e lembrava detalhes mínimos da ação. Júlio estava feliz com Marcos. Essa
era a atitude que ele queria do colega. Nada de reflexões. A ordem era curtir o
que a vida lhes oferecia. "Vou ver o que tem pra gente lá dentro."
Marcos levantou-se e inspecionava o carro em todos os compartimentos. Ao achar
um relógio no porta-luvas saiu do carro e acenou para os amigos avisando que
teria direito à posse do achado. Ao entrar novamente, visualizou um pequeno
livro no banco de trás. No escuro não percebeu, mas ao acender a luz interna
pode ver que era uma Bíblia. Folheou algumas páginas sem muito interesse e a jogou
de volta no banco de traz. Era tarde e os cinco amigos, cansados, caíram
adormecidos sem se importar nem perceber a gravidade de seus atos.
Quando o celular tocou já eram nove da manhã. Marcos sentia uma forte
dor de cabeça, resultado das cervejas e drogas da noite passada. Felipe, e os
outros faziam um lanche na cozinha e Júlio conversava atentamente pelo
telefone: "Pode crer irmão, os meninos da Rua 12 vão tá lá e mostrar
serviço, deixa com a gente. Falô mano!" Ao desligar o celular, Júlio deu
um grito e chamou todos para o terraço. Havia novidades importantes:
"Seguinte, recebi uma ligação do Cachorrão e ele falou que a gente tá
chamando muita atenção e que é melhor se juntar cum a galera dele, assim nós
vamo ganhar respeito e muito mar dinheiro. O homi tem um serviço e quer que a
gente participe. Qual é a de vocês? Tamo junto?" Todos vibraram com a
notícia, inclusive Marcos, que acreditava ter se livrado da tal voz na sua
cabeça, embora ainda sentisse algum incômodo no peito.
Estavam agora os cinco garotos, a quadrilha dos meninos da Rua 12, no
carro furtado na noite passada. Júlio dirigia, ao seu lado estava Felipe e no
banco de trás estavam Marcos, Tiago e Jonas e é exatamente neste momento que a
aparente distração de Marcos incomoda a Júlio.
"Acorda cara, que porcaria é essa cara? Tá todo mundo ligado
na parada e só tu nessa viagem, presta atenção cara!"
"Qual é cumpadi?! Quando foi que eu dei furo? Diz aê! Tô só
repassando o esquema. Dirige aê e me deixa quieto".
No seu recolhimento Marcos sentia o coração apertado como se
soubesse que algo muito ruim estaria por acontecer. "Relaxa mano, a gente
vai tá curtindo muito hoje a noite" dizia Jonas ao colega pensativo
percebendo que algo não estava bem. Marcos relaxou e em menos de 30 minutos
chegaram ao local marcado.
Uma velha fábrica abandonada abriu seus portões para os meninos da Rua
12. Lá dentro estavam Cachorrão e sua quadrilha. Eram oito dos bandidos mais
perigosos da cidade. A maioria já havia sido presa e para eles já não havia
nenhuma ansiedade, temor ou receio. Aquela seria apenas mais uma
"parada", mais um "lance" a ser feito. Se desse certo ou
não, para eles sempre era hora de viver, morrer, ou matar.
O alvo era uma transportadora de valores. Cachorrão sabia que a empresa
receberia uma carga valiosa de relógios de luxo. Se desse tudo certo, após a
venda do material, cada um lucraria o bastante para sumir por um bom tempo
vivendo como um rei.
Cachorrão detalhou as ações de cada um, mas a participação dos meninos
exigia mais "coragem", e só os garotos da Rua 12 poderiam fazer o
serviço bem feito. Pela primeira vez a percepção incômoda de Marcos se mostrou
claramente vantajosa e injusta, pois ao mesmo tempo em que percebeu que
Cachorrão os usaria como escudo, também notou que só ele enxergava isso. Marcos
achou prudente silenciar e só depois avisaria aos colegas.
Saíram todos em três carros. Duas caminhonetes levavam a quadrilha de
cachorrão, os meninos seguiam na frente do grupo, já antecipando sua função de
escudo. "Aê galera, alguém ai tá ciente que a gente tá entrando num fria?
O cara vai botar a gente de escudo, ninguém notou?" "Qualé Marcos,
vai começar a impregnar. Sussega aê mano. Se a gente fizer o serviço na
responsa o cara vai meter a gente notras fita melhor ainda. Se liga mano, num vai
furar hein?!" Júlio cortou imediatamente qualquer tipo de consideração
contrária ao que decidira o líder Cachorrão e assim, Marcos sentia-se cada vez
mais como um estranho no ninho. Parecia o único a ver a luz real, sem sombras.
Era um vidente no meio de cegos.
"Todo mundo no chão. Se colaborar ninguém vai morrer. Júlio, leva
teu grupo pro portão principal. Fica lá até a gente rapar o cofre. Vai mano,
num temo temp..." PA, PA, PA, "Polícia! Mão na cabeça malandro, senão
leva chumbo!!!", "Sujou, sujou..." PA, PA, PA, RATATATATATATATA,
"Corre mano corr... RATATATATATATA", "Júlio, Júlio, acorda
mano", "Deixa ele cara, já era num tá ven... olha os polícia mano,
mete bala!!!" PA, PA, PA, PA, RATATATATATATA, PA, PA, PA, "Os home
tão matando tudo, mataram o Jonas... corre mano corre" PA, PA, RATATA,
"Ai meu Deus levei um ti...o no pe..i...to...",
"Felipe, Felipe...meu deus me ajuda, num me deixa morrer...".
Só uma luz brilhou naquele momento. Havia uma pequena porta entreaberta
no fundo do salão pela qual se esgueirava um fino raio de luz. Marcos
arrastou-se em meio aos corpos caídos de todos aqueles que, há pouco, jamais
poderiam supor ou imaginar a fragilidade de suas vidas.
Quando abriu a porta, um esquadrão de policiais descansava da batalha,
alguns feridos e dois mortos. Um oficial olhou para aquele garoto, sujo de
sangue, chorando e pedindo pra não morrer. O homem se dirigiu ao garoto e
repetiu mais uma vez sua enigmática mensagem: "Nove, um, sete. Leia,
depois devolva minha bíblia, meu carro e meu relógio." Marcos levou seu
olhar para salmos, capítulo 91, versículo 7 e leu com os olhos lavados de
lágrimas:
"Mil poderão cair ao seu lado; dez mil,
à sua direita, mas nada o atingirá."